segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Bilíngue = Bicultural

O poeta Enio costumava dizer que tinha três almas, pois ele acreditava ter uma alma para cada língua que falava. No caso, Enio dominava o grego, o latim e o osco, sendo a última sua língua pátria.
Ele dizia que tinha três almas (ou três corações, em outra tradução), pois via o idioma como uma extensão da cultura de um povo.

Não posso afirmar sobre a quantidade de almas, mas sobre o outro ponto acredito que ele estava certo. Termos e expressões são usados em um contexto e esse contexto é a cultura. 

A cultura do povo molda a forma como ele constrói o idioma, bem como a forma como ele o usa. Por exemplo, por que os ingleses sentiram a necessidade de diferenciar fingers de toes e os portugueses chamam ambos de dedos? Por que algumas línguas possuem mais nomes de cores do que outras?

Nesse sentido, em diversas línguas não há distinção entre as cores azul e verde. Por exemplo, em alguns casos, o idioma japonês usa a palavra  [Ao] (azul) para se referir a coisas que nós chamamos de verde, como semáforos. Em coreano, a palavra 푸르다 (pureuda) significa as duas cores. O mesmo ocorre em tailandês e na língua vietnamita.
Alguns pesquisadores (B. Berlin e Paul Kay) afirmam que uma língua só desenvolve palavras específicas para designar as cores cinza, rosa, laranja, violeta e marrom depois de estabelecida a distinção entre verde e azul. [Basic Color Terms: Their Universality and Evolution – 1969]

Da mesma forma, a tribo indígena Pirahã possui uma forma muito diferente de enxergar o mundo, e, em especial, números. Por não possuírem o conceito de números, apenas ‘muito’ e ‘pouco’, eles raciocinam nesses termos. Isso deve ser consequência de sua forma de subsistência (caçadores-pescadores). Não lhes interessa se são 4 ou 5 peixes, uma vez que ambos os números são baixos para alimentar a aldeia, logo, ‘pouco’. No mesmo sentido, 4 ou 5 capivaras devem ser mais do que o suficiente para alimentar a aldeia, logo, ‘muito’.

A tribo australiana Guugu Yimithirr usa leste, este, norte e sul, ao invés de direita e esquerda. Por consequência, seu senso de direção é mais apurado do que o dos ocidentais acostumados em usar referências egocêntricas, como ‘à minha direita’ e ‘à minha esquerda’.

Depois de tantas curiosidades linguísticas, chego nos finalmentes.

Para pessoas bilíngues, essas diferenças alteram suas formas de pensar. Uma criança bilíngue português/coreano terá uma percepção de cores diferente de uma criança monolíngue em coreano. Por outro lado, ela perceberá a relação língua-cor de forma muito menos rígida. 
Para um monolíngue, o nome dado para a cor torna-se absoluto em sua mente, e vira referência para suas comparações. Ou seja, se não existe um nome diferente para verde e para azul, a pessoa perceberá as duas cores de forma mais próxima do que alguém que aprendeu um nome para cada uma das cores. 
Por outro lado, uma criança bilíngue terá maior facilidade em ver o significado desassociado do significante por conhecer dois signos possíveis para aquela situação.

Calma, acho que me empolguei rs.

O significado é a coisa no mundo real, por exemplo, uma cadeira, ou seja, o objeto no qual sentamos. O significante é a palavra ‘cadeira’ ou a palavra ‘chair’ e por aí vai. O signo é essa relação palavra-realidade. Nesse caso, temos a relação ‘objeto para sentar/palavra cadeira’ e a relação ‘objeto para sentar/palavra chair’. Ou seja, dois signos (relações) entre dois significantes diferentes (palavras) para um mesmo objeto (significado).
Para um monolíngue, um signo tende a ser absoluto. Enquanto que o bilíngue entende que existem mais de um signo possível para a mesma situação, e, por conta disso, sua mente trabalha com ambas as possibilidades.

Uma criança bilíngue não saberá apenas falar duas línguas. Ela enxergará o mundo através de dois pontos de vista diferentes. Ela será exposta a duas culturas. E cabe aos pais garantir à criança esse contato com ambas as culturas. Em posts futuros, tentarei dar dicas de como dar aos seus filhos contatos com uma cultura, ainda que longe de casa.

Um grande abraço,

Alguns pensam fora da caixa, outros enchem a caixa com água e brincam!

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